Davi Calil

Primeiro, muito obrigado por aceitar participar dessa entrevista. Eu gostei muito de Kung Fu Ganja e quero fazer minha parte ajudando a divulgar seu trabalho para que mais pessoas tenham a chance de conhecê-lo.

Como surgiu a ideia para fazer Kung Fu Ganja? Quando começou a trabalhar na história?

Comecei a trabalhar na concepção deste projeto ainda em 2015. Inicialmente, eu estava pensando em desenvolver uma série onde eu pudesse colocar minhas influências de artes marciais, mangá e anime (até agora só fiz projetos fechados, é a primeira vez que trabalho uma história em série). Ainda não era o Kung Fu Ganja, era um épico de humor e artes marciais, mas já tinha uma semente ali, rsrs. Na época eu estava dividindo um estúdio com o Artur Fujita e o Greg Tocchini, que também são autores de HQ. Nós vivíamos conversando sobre nossos projetos. Eis que um dia eu havia voltado de um treino de Kung Fu (treinei artes marciais a vida inteira, na época eu praticava Kung Fu), estava sentado na minha cadeira, ainda com a roupa do treino, apertando um rolinho de papel (uma espécie de origami que a gente incinera depois de pronto, rsrs), quando o Fujita passa, me olha com um sorriso na cara e solta algo mais ou menos assim: ” Bonito hein?! Você é o Kung Fu Ganja, por um acaso?” rsrs. Na hora eu e ele ficamos parados nos olhando e ele ainda falou: “É um puta nome hein?!” rsrs. Daí eu pedi pra usar e ele deixou (tem uma lenda aí que diz que ele vai me processar um dia, se o projeto fizer muito sucesso, rsrs, vamos ver, tô torcendo pra que ele tenha motivos, rsrs. Depois disso fiquei com o nome na cabeça. A história que estava escrevendo começou a ganhar outros contornos. Junto com o nome veio a ideia de usar as “plantas mágicas”, não só a ganja, mas todas as outras substâncias psicotrópicas ou não, como fontes de magia e poder no universo dos personagens. Até hoje me impressiono com o tanto de gente que não faz ideia do significa a palavra Ganja (eu nunca conto, deixo pra pessoa descobrir lendo o quadrinho).

Você pesquisou algum material específico para criar o universo de Kung Fu Ganja? Quais foram as principais referências?

Sim, pesquisei muito, pesquiso o tempo todo, na verdade, vivo salvando imagens e textos que acho relevantes pra algo da história. É um processo que não tem fim, rsrs. Acredito que a maior vantagem da pesquisa histórica foi encontrar um período turbulento da história chinesa, no séc XIII, quando os mongóis fizeram sua grande invasão. Entre o final da Dinastia Song e o começo da Dinastia Yuan. Isso serviu de pano de fundo para o conflito em que os personagens acabam metidos. Não que eu me apegue a alguma necessidade de seguir fatos históricos. A ideia sempre foi de criar um universo maluco, fictício, com algumas pinceladas de fatos históricos. Gosto muito deste período porque foi quando reativaram a Rota da Seda. É também a época em que surgem as histórias do Marco Polo. Além das pesquisas, tive influência de filmes chineses de Kung Fu dos anos 70 & 80, das dublagens brasileiras de anime que zoavam muito, como Yu Yu Hakusho, Trigun e One Punch Man e também de Hermes&Renato.

Você continua trabalhando na série dentro da sua rotina? Conte-nos um pouco sobre sua rotina de trabalho. Você tem algum tipo de meta de produção, como terminar 2 páginas por semana?

Então, primeiro eu escrevo uma escaleta (uma versão compacta, em parágrafos, contando tudo que acontece na história). Depois, vou usando a escaleta pra separar a história por numero de páginas (pra garantir que vai caber tudo rsrs). Para o segundo volume do KFGanja eu estou tentando deixar pelo menos os esboços das páginas e os diálogos prontos antes e começar a desenhar. No momento, estou na metade deste processo. Eu escrevo os diálogos depois que esboço, assim já vou pensando nas expressões dos personagens. Depois vem a etapa de limpar o desenho e colorir, faço tudo digitalmente.

O Kung Fu Ganja ainda me dá pouquissimo retorno financeiro, que só vem depois de muitos meses de produção, quando vendo os livros, portanto eu tenho que continuar trabalhando com meus freelas e dando aulas pra manter as contas em dia. Já sabia que seria assim, não tem muito jeito, quem sabe uma hora o projeto não ganhe mais corpo e eu consiga mais horas pra me dedicar a ele?!

Você já tem um final concebido, ou ainda é uma série em aberto? Você escreve todo o roteiro antes? Ou desenha e cria o roteiro ao mesmo tempo?

Sim, tenho o final escrito em linhas gerais! É como se fosse o destino de uma viagem, já marquei onde quero chegar, agora é ajustar o curso e caminhar nessa direção!

Na verdade, como a trama tem inúmeros personagens, eu tenho escrito também em forma de “arcos” para cada um deles. Esses arcos de histórias vão se conectando, espero que assim fique cada vez mais nítido sobre o que realmente se trata a HQ! Mas vai demorar, pretendo ficar alguns anos desenvolvendo todas essas histórias interconectadas, rsrs, é o maior desafio em que já me meti. Ao mesmo tempo, tenho aprendido muito com o processo.

Capa Kung Fu Ganja

Como foi ver sua webcomic se materializar numa publicação impressa?

Pois é, foi muito bacana! Tudo foi planejado desde o início. Queria sentir qual seria a diferença entre lançar o livro direto no papel (como havia feito nos projetos anteriores) ou gratuitamente na internet pra formar publico e depois imprimir. Fiquei muito satisfeito, ao mesmo tempo aliviou um pouco o peso da produção, pois mais da metade do livro, fiz aos poucos, pra ir postando. Só precisei dar uma corrida mesmo no fim. Quando digo “dar uma corrida” quero dizer abrir mão de toda qualidade de vida, amigos, passeios e possivelmente sua sanidade, pra ficar desenhando até ver o livro pronto, rsrs. Toda vez que estou a um mês e meio ou dois do fechamento isso acontece!

E quanto ao seu processo de trabalho nos quadrinhos (em geral). Você tem preferência por trabalhar com materiais tradicionais, como lápis, nanquim, gouache, etc? Ou já é adepto do trabalho usando ferramentas digitais?

Cara, o que vou falar é uma opinião bem pessoal, não tem certo e errado nessas coisas. Já usei de tudo nessa vida, adoro pintura tradicional, estudei anos de óleo e aquarela, pinto com qualquer tinta, mas gosto mesmo é de guache, rsrs! Hoje em dia minha produção de HQ é 100% digital (ainda continuo pintando e mexendo com tintas, mas não nos quadrinhos). Já fui mais encanado com o desenho, com a finalização, com o processo, a textura do papel, o falhadinho do pincel, mas passou. Antes de começar a levar a estrutura do roteiro a sério eu dava muito mais importância pro lado técnico e virtuoso do desenho. Agora a coisa inverteu, o desenho virou apenas uma ferramenta pra contar a história, então, pra mim ele tem que ser expressivo e engraçado pra fazer o leitor imergir na história. Esta imersão do leitor na minha história é o que eu busco hoje em dia. Não é o falhadinho do pincel que faz isso, ou a mancha da tinta, que irão criar esta imersão do leitor.

[Certamente que não. Concordo contigo!]

Acredito que isso ocorra qando o desenho trabalha em função do roteiro, da narrativa, e empresta carisma suficiente pros personagens. Gosto de usar material tradicional pra desenhar, mas tenho que ser honesto, fazendo tudo digital eu ganho muito mais tempo e não sinto que isso compromete a qualidade do trabalho. No fim das contas, a gente tem um tempo limitado de vida, rsrsrs, principalmente vida com pique e saúde pra produzir, não quero desperdiçar tempo de produção por purismo técnico, vou aproveitar o tempo que ganho no digital pra fazer mais páginas.

Fale um pouco de você e de sua trajetória. Quando começou com quadrinhos? Quais seus principais trabalhos?

Aos quadrinhos eu me dedico desde 2007 ou 2008, não foi quado comecei, mas foi quando decidi que iria virar um autor, que iria escrever e desenhar minhas histórias. Meu começo mesmo foi com uns 14 ou 15 anos, fazendo tirinhas para o jornal da minha cidade, Guararema, interior de SP. Naquela época eu era o desenhista oficial da cidade, rsrs, fazia todas caricaturas, logos, ilustrações, tudo feio, torto, feito sem saber o que estava acontecendo, rsrs. Com 18 me mudei pra SP capital, fui estudar com o pessoal da Quanta (na época a escola se chamava Fábrica de Quadrinhos). Lá sim, eu conheci os primeiros artistas profissionais da minha vida, alguns deles são meus amigos até hoje. De lá pra cá trabalhei com as principais editoras do país, revistas e jornais. Foi nessa época que eu me dediquei bastante aos estudos de pintura o que acabou me levando a dar aulas (coisa pela qual peguei gosto, rsrs).

Em 2009, comecei a publicar as HQs que escrevia na revista MAD do Brasil, foram 2 anos, aprendi muito neste período. Depois vieram os trabalhos com animação e em 2013, eu, Greg, Fujita, Roger Cruz, Julia Bax, Bruna Brito, Amilcar Pinna e Amanda Grazini fundamos o coletivo Dead Hamster, que também se tornou um selo independente (onde vim publicar a maior parte dos meus trabalhos).
Publiquei Surubotron, escrita e desenhada por mim, Quaisqualigundum, com roteiro do Roger Cruz – essa HQ em fiz toda pintada com aquarela e guache. Na sequencia fomos chamados pra fazer uma Graphic MSP do Jotalhão e da Turma da Mata (roteiro Fujita, desenho Roger Cruz e eu fiz a cor). Em 2016 eu lancei a HQ Uma Noite em L´Enfer (editora Mino) e no ano seguinte o primeiro volume do Kung Fu Ganja.

Uma Noite L'Enfer

Uma Noite em L’Enfer

Quais quadrinistas e autores você admira mais? Quais são suas referências?

Difícil dizer porque são muitos, sempre deixo alguém importante de fora, vou falar mas certamente esquecerei de alguns, rsrs.

Lá no começo, criancinha msm, eu adorava Turma da Mônica. Na sequência vieram os quadrinhos de Super Heróis, e Piratas do Tietê, da Laerte. Piratas eu achava que sobressaia do resto, acho que é porque os personagens mostravam o pinto, falavam palavrão, essas coisas que eu nunca ia ver na Mônica nem nos SH, rsrs! Lia também a revista MAD, Aragonés, Spy vs Spy, sátiras de filmes, adorava tudo isso. Outra coisa que também me influenciava muito (mas eu ainda não sabia) eram os animes, quado eu era moleque ainda não se publicava manga na banca, era muito raro, mas na TV já começava a passar algumas coisas. Dragon Ball, principalmente o início, onde o Goku é criancinha (tenho muita influência disso aí, rsrs), as escadarias intermináveis dos Cavaleiros do Zodíaco, Zillion, Akira. Hoje em dia eu leio muito Manga, gosto mto do formato de séries, One Piece, Berserk, One Punch Man, Slam Dunk são os que eu estou acompanhando no momento.
Li também um bom tanto de HQs europeias, começando pelo Asterix, por influência do meu pai, Tintin, Moebius, Manara. Depois vim a conhecer o trabalho de alguns franceses mais contemporâneos que fizeram minha cabeça explodir, rsrs, Cristophe Blain e Yohan Sfar.
Esses são os autores que li e me influenciaram, mas ainda mais importante do que eles, tem os artistas com quem eu convivo, de quem eu não tenho nem como calcular o quanto me influenciam até hoje. São eles: Marcelo Campos, que me falou sobre narrativa e linguagem de HQ, Roger Cruz, que até hoje me deixa de queixo caído com os desenhos e projetos que vive criando. Julia Bax, fez meu desenho melhorar 50 anos em 5, rsrs! Artur Fujita e Greg Tochinni, que são os meus parceiros de 1000 tretras, rsrs, dividimos estúdio por mto tempo, muitas mil horas de convívio, ambos artistas fantásticos. Jeff Costa, Diego Sanches, Daniel Rossini, tanto amigo que desenha bem, sinto que todos estão sempre me ajudando a ficar um pouco melhor a cada dia ,rsrs.

Como você vê o mercado para quadrinhos aqui no Brasil? Você acredita que é possível viver deste ofício como autor?

É engraçado, porque ouço essa pergunta do “se o autor vai conseguir viver do próprio trabalho” com uma certa frequência. Não acho que vai acontecer como aconteceu em outros países (EUA, França, Japão) porque agora os tempos são outros, a mídia impressa tá diminuindo a cada ano, não imagino que uma hora vai começar a vender muito e os artistas vão poder ficar vivendo só de fazer gibi. Tem também a questão das editoras brasileiras não serem muito boas (grandes ou pequenas), o pessoal é até bem intencionado, mas falta organização pra passar relatórios de venda, fazer acertos, etc. É só conversar com os autores que você ouve as mesmas reclamações vindo de todos os lados. Gosto de abordar essa questão de outra forma, penso que no mundo existe gente com talento pra ganhar dinheiro e outros q não tem. Daí, se essa pessoa tem tino comercial e vende sapatos, ela vai viver de vender sapatos, se marcar fica até rica vendendo sapatos. Por outro lado, as pessoas como eu, q não tem esse talento para os negócios (acho q a maioria dos artistas não tem), ficam esperando que se forme um “mercado” pra poder ficar só desenhando, enquanto outras pessoas fazem a parte chata pra gente (vender, estocar, distribuir, etc). Não acho que isso vá acontecer. O que eu faço é tentar me inspirar e aprender com quem sabe fazer negócios, melhorando assim nesse aspecto. Por exemplo, enquanto nada acontece por aqui, a gente deveria tentar se inserir nos mercados que já existem. No momento, eu estou tentando vender meus projetos para editoras de fora do Brasil, ainda tô no começo, mas acredito que se insistir, tentar de formas diferentes, umas hora consiga. Acho que ao invés de ficar esperando o mercado daqui formar ou não, a gente devia explorar os mercados que já existem. Tenho investido em fazer independente, buscando vender direto pro público, é o único jeito de ver algum dinheiro, mas isso envolve cuidar de todo o processo de produção. Vai muito do perfil de cada artista.

Quais são seus próximos projetos? Está trabalhando em algo além de Kung Fu Ganja?

Então, como o KFGanja é uma série longa, eu vou ficar um bom tempo trabalhando nele como meu projeto principal (é quase como se fossem vários projetos num só, rsrs)! Tenho a ideia de fazer uma história curta contando a origem do Samurai que aparece no volume 1 e alguns projetos em parceria com amigos autores, mas ainda estão na etapa inicial de concepção, nada que eu possa comentar ainda.

[Valeu demais pela entrevista! Foi super legal ficar conhecendo mais sobre o seu trabalho e sobre você. Ficamos aguardando com grande expectativa Kung Fu Ganja volume 2.]

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