Continuando a falar da voz de um personagem, você sabia que a voz do personagem também se manifesta fora do diálogo?

Voz do personagem fora do diálogo

Sim, é comum que para desenvolver a história falemos sobre o nosso personagem fora do diálogo. Neste momento, a voz do autor, a sua escolha de palavras e o tom/clima clima implicado ajudam a construir o personagem. Tanto para descrever suas ações, seus arredores e como ele percebe seu ambiente, colocando pensamentos diretos ou não. Podemos notar se alguém é inocente, malicioso, tem alto nível social, ou baixo, etc.

Para ajudar a ilustrar isso, selecionei alguns trechos de livros aqui da minha estante nos quais podemos notar a construção do personagem fora do contexto de diálogos.

O primeiro é de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (Esse livro é ótimo, quem já leu?). Vejamos:

Logo que ele (Dorian) saiu da sala, as pesadas pálpebras de Lorde Henry se fecharam e ele pôs-se a meditar. Certamente poucas pessoas lhe haviam interessado tanto como Dorian Gray, e, no entanto, a louca adoração do adolescente por outra pessoa não o molestava de modo algum, nem lhe provocava o menor ciúme. Agradavam-lhe. Convertia o jovem num motivo de estudo mais interessante. Sempre tivera propensão pelos métodos das ciências naturais, mas as matérias correntes dessas ciências lhe haviam parecido vulgares e sem importância. Por isso, começou a dissecar a si mesmo e acabou dissecando os outros. A vida humana parecia-lhe a única coisa digna de investigação.

Quanto não aprendemos sobre Lorde Henry (e até sobre Dorian) neste parágrafo?

O segundo é de um livro infanto-juvenil de minha autora favorita, Diana Wynne Jones, chamado Tesourinha e a Bruxa. Vejamos:

Tesourinha tapou o nariz por causa do cheiro, perguntando-se se a bruxaria precisava de fato de tantas coisas podres. Ela pensou que, quando houvesse aprendido o suficiente, seria um novo tipo de bruxa. Uma bruxa limpa. Enquanto isso, correu os olhos ao redor e ficou atônita ao ver que o lugar parecia ter pelo menos o mesmo tamanho de todo o bangalô.

Acima podemos notar como a bruxinha reage a uma situação adversa, e ainda, a autora mostra um pouco de suas aspirações e sua índole.

Agora um trecho de Shiroma, Matadora Ciborgue, ficção científica do autor Roberto de Sousa Causo. Um bom livro, recomendo.

Sozinha em sua nave, já distante de Vega 3, Shiroma tinha a sua mochila aberta ao lado do assento, e em suas mãos o conteúdo precioso que atraíra o olfato dos gneifohros. Agora, com a sala de comando desodorizada e livre do cheiro dos alienígenas, ela levou a concha do mar ao nariz. Apenas o aroma já enfraquecido do nácar. Mas eles haviam dito que havia ali um outro cheio – “o cheiro de uma Shiroma antes da sua maturidade como fêmea”. Como eles poderiam saber que ela fizera o seu teste de sobrevivência, quatro anos atrás, morava um fantasma – o fantasma dela mesma, antes de se tornar Shiroma, a assassina? Ali vivia uma menina, apenas uma voz incorpórea, mas a menina que Shiroma havia sido antes de ser sequestrada e transformada em matadora profissional.

Note como o autor está trabalhando na construção da personagem, embora nada esteja acontecendo na trama, nesse momento. E a construção do aspecto psicológico da personagem é muito relevante para a trama e construção da personagem. Embora ela seja uma assassina, ainda vive dentro dela uma fração de si mesma, frágil e reprimida.

Agora examinemos um trecho de O Caso de Charles Dexter Ward do mestre do horror, H.P. Lovecraft:

Evidentemente, não era novidade que Charles resmungasse fórmulas, mas esse resmungo era definidamente diferente. Era claramente um diálogo, ou uma imitação de inflexões sugerindo pergunta e resposta, afirmação e réplica. Uma voz era inconfundivelmente a de Charles, mas a outra tinha uma profundidade e timbre profundo e cavernoso que, apesar dos maiores poderes de imitação, o jovem jamais havia conseguido reproduzir.  Tinha algo de medonho, blasfemo e anormal, e não fosse um grito de sua mulher que voltava a si, clareando sua mente e despertando nele o instinto de proteção, é muito provável que Theodore Howland Ward não conseguisse manter por quase um ano ainda seu velho motivo de orgulho, o fato de jamais ter desmaiado.

Note a escolha das palavras e frases formadas. Certamente conferem um clima sombrio e de estranheza. Mas também vemos revelações sobre o personagem, com o fato de possuir um instinto de proteção, etc. Algo que é incrível nessa obra é que é praticamente desprovida de diálogo. Toda a trama e personagens são construídos na prosa de modo semelhante ao que vimos no trecho acima.

Para encerrar, um trecho de Muncle Trogg, o menor gigante do mundo, de Janet Foxley.

Era a mais pura verdade. Muncle fazia dupla com Brutus Imbecil na aula de Ciência dos Dragões, e era Brutus quem realizava todo o trabalho prático. O garoto não deixara Muncle cuidar nem das poucas partes que ele alcançava. Muncle teria adorado alimentar o dragão da escola e lustrar suas escamas, mas jamais desejaria cortar suas asas. Ele via o medo nos olhos do animal sempre que era feita a tosquia. O aparo de asas devia machucar.

Conhecemos mais sobre Muncle, em geral, ele é excluído por ser pequeno. Mas vemos também que ele se preocupa com o bem estar de animais. Que tem boa índole.

Os personagens se revelam através da fala e das ações. Mas quando você está escrevendo um personagem, nem tudo vem no diálogo, é também importante considerar as palavras que eles escolhem para expressar seus pensamentos.