Quando recebi minha cópia de Symetrias Dyssonantes, acreditava que era uma antologia “comum” de contos de ficção científica. Uma olhadinha no índice livro, pareceu confirmar isso, tendo 20 contos mais o epílogo. Escrito por Luis Bras, alter ego de Nelson de Oliveira.

O primeiro conto, Pupilas douradas, também confirmava essa percepção. Nele temos um diálogo, possivelmente uma entrevista, na qual um homem fala a respeito do aplicativo de inteligência artificial que desenvolveu com o objetivo de ampliar sua presença online. A coisa vai muito bem, num primeiro momento. De fato, amplia a quantidade de suas interações através da IA (avatar de si mesmo) com seu país, e depois, com o mundo inteiro. No momento em que essa IA passa a dialogar com outras IAs no ambiente online, a coisa toda foge ao controle de seu criador e toma um rumo inesperado. Algo no conto remonta o tema do monstro de Frankeinstein, muito explorado em histórias de IA. Um conto bem interessante.

O segundo conto, Buscador, é curtinho e bem humorado. Parte da premissa de uma nova funcionalidade de busca que permite ver o futuro.

Inteligência, continua explorando a evolução tecnológica, em especial a questão das IAs e agentes inteligentes como a Siri e o Google Assistente. Explora uma possibilidade perturbadora.

Conforme a antologia prossegue, começam a aparecer alguns contos diferentes, que exploram a meta linguagem, formato e uso do idioma. O primeiro exemplo é o texto, Você sai dois milhões mais pobre da arena dos negócios.

Há alguns contos que escapam do contexto aparente da obra, a exploração de temas afeitos à FC. Por exemplo, em Presentinhos, temos uma narrativa fortemente ancorada no sentido do olfato.

Suspeita mostra a conversa de dois amigos e o assunto principal é uma garota pela qual um deles se apaixonou. O final, no entanto, nos remete a viagens temporais.

Manifestação é um texto no qual surge o primeiro traço de uma nova característica da obra: sentenças de construção não convencional e jogos com a linguagem. Leia um trecho:

Você penetra a mente minúscula da mosca, da moscaria inteira, teu pensamento ziguezagueia por milhares de sensações em sentido, por explosões neurais de inseto insatisfeito, bombas abalam a certeza da galera que foge da cavalaria, dois rapazes atravessam uma nuvem de tosse & lágrimas, você penetra a mente deles e se banha em tesão & testosterona, o asfalto treme, tua libido etérea sintoniza a libido histérica do michê machão, da mãe de santo, do travesti e da cartomante, ecoando e escoando no orgasmo sexual & espiritual que cada indivíduo carrega em seu corpinho mamífero.

Distrito federal, volta ao tema do cheiro e trata de uma experiência catártica para os brasileiros que se sentem presos pela classe política e politiqueira encastelada na distante capital do planalto central.

A partir de Sob a cúpula, começam a surgir contos que não estão de todo fora da FC, mas também tem um quê de esotérico e universal. O jogo de palavras e o uso diferenciado da linguagem fica mais evidente. O conto traz um vislumbre de um futuro pós-apocalíptico e distópico onde o Estado Único domina parte do funcionamento da sociedade, exceto uma parcela um tanto bizarra que se rebela contra o sistema. Surge também, com mais força a temática sexual e questões de gênero.

Hotel extraordinarium, mostra um local futurista com sabor distópico, sensações cibernéticas e presença do transhumanismo. Como outros textos da coletânea, não constitui uma narrativa tradicional voltada para um enredo, mas sim, um texto denso que prioriza gerar sensações e pensamentos estranhos no leitor, mais do que constituir uma trama em si mesma.

Symetrias Dyssonantes, parece um cântico em um idioma futuro análogo ao portunhol. Faz alusões a canções dos Mutantes e dos Beatles, mas ao mesmo tempo trata de futuro pós-apocalíptico no qual a figura do Mapynguari Yabba Dabba Doo confronta a nuvem-nada. Aqui começam a surgir elementos que conectam essas narrativas no sentido da metalinguagem que insere o escritor, ou referência ao escritor na narrativa e a existência de personagens auto-conscientes. É um texto um tanto críptico, mas que certamente causa sensações dentro do aspecto do uso distorcido do idioma somado a uma imagética bizarra.

Depois desse último conto, o leitor já começa a se preparar para possibilidades imprevistas. Em Revolução do ziper, voltamos a ter sensações distópicas ligadas ao conceito de controle da liberdade e censura. Um texto que também mergulha na meta linguagem, tem o “FIM” declarado e depois revogado, uma ótima sacada, aliás.

Em Devorada pelo domingo, chegamos a uma estranha biblioteca controlada pela Velha e pela qual circula Manuela. Adiante surge Tainá, e talvez, possa ser uma alusão à personagem que surgiu no conto Suspeita. Uma palavra aqui, outra expressão ali, no faz questionar de algum modo esses contos estão relacionados entre si, afora do óbvio de serem textos do mesmo autor. Surgem aqui também as figuras de Eumesmo e Elepróprio.

Curto circuito camicase, é uma narrativa em contagem regressiva que trás Manu, Eumesmo e Elepróprio. Há uma guerra, algo muito surreal acontece por aqui, tempo acelerado ou que volta e fica clara a conexão deste conto com o anterior.

Em Saltos altos, Babel está no meio de um diálogo por mensagens de aplicativos. Mais uma vez o autor investe na exploração da linguagem e sensações, o leitor, confuso, vai desprendendo a mente daquelas leituras “seguras” e cheias de sentido, enredos e desfechos.

De algum modo, em Este lado para baixo? Temos uma continuidade do texto anterior, um crime, um suicídio que nunca existiu, que não foi registrado, do qual não se sabe?

Obituário e Fim do lockdown, pourra! são minicontos de crítica social na qual vemos alusões aos tempos atuais, mas talvez futuros.

Kurupira Maquinaíma alienigenus, trata de uma desconstrução da linguagem, através de um jogo de palavras e símbolos gráficos e de algum modo dialoga com o epílogo, La profana santidad, que vai para um futuro onde a própria linguagem se dissolve, ao mesmo tempo que se forma um mantra metalinguístico:

Então, fulana, você acredita mesmo que esse é o futuro da ficção? Marionetes que enxergam os fios? Criaturas sem corpo num mundo-fantasma? Personagens autoconscientes nascendo, vivendo, amando, sofrendo e morrendo num emaranhado de textos?

Symetrias Dyssonantes é uma obra que pode ser lida rapidamente, possui alguns contos convencionais de ficção científica, ou perto disso, e outros que se desviam para uma exploração de ideias bizarras e uso da linguagem em formas linguísticas não usuais.

A tomada de consciência dos personagens de que são meros construtos literários é um conceito interessante, ainda a interpretação disso possa não ser direta, ou clara, pelo leitor.

Não é um livro para qualquer um, talvez algumas pessoas desistam ao entrar na segunda metade do livro, mas para aqueles dispostos a entrar nessa viagem, serão recompensados com pensamentos e sensações que dificilmente poderiam chegar à mente em “condições normais de temperatura e pressão”.

O livro pode ser adquirido aqui:
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