Coisa Aranha – Ilustrado pela IA Midjourney

Este conto faz parte da coletânea Tempestade de Ficção #1. Foi escrito com base em palavras sorteadas aleatoriamente. Divirta-se!

Carlos Rocha

Bris vestia-se de puro preto. Movia-se como uma sombra na noite, como se estivesse procurando algo de ilegal para fazer. Vestir-se assim, durante o dia, seria suicídio. As noites eram quentes, muito quentes, deixando todo seu corpo empapado de suor. Mas os dias, ah! Esses eram mesmo infernais! Se precisasse sair durante o dia, ele vestia uma roupa idêntica, porém, toda branca. Todo o tecido era envolvido por fitas de alumínio finíssimas que refletiam a luz e, na frente dos olhos, tinha que usar o visor de inurartita, um mineral valioso que tinha a função de filtrar as fortes luzes solares. Durante a noite o instrumento ficava guardado em sua mochila compacta, sempre presa às costas.

O ASPE seguiu até a velha ponte observando e ouvindo atentamente. Ele era o fiscal responsável por monitorar vazamentos nas reservas de água da cidade. Pode soar enfadonho, mas era um trabalho bem perigoso. Registros que viraram lendas contam que antes do tempo do segundo sol, corria um rio no fundo do vão da ponte. Naquele tempo a água corrente era um recurso considerado ilimitado. Nos dias atuais, a água vinha apenas, a cada década ou duas, em tempestades torrenciais provocando enxurradas e fazendo os velhos cursos d’água renascerem por um ou dois dias até tudo voltar a secar. Tudo naquele mundo teve que se adaptar à falta de água e ao calor extremo. Os humanos que sobreviveram à grande evaporação viviam entocados em suas pequenas cidades. Todos seus esforços foram voltados para a construção dos reservatórios subterrâneos, a mineração e as estufas de cultivo. Comer carne era um luxo, ou coisa do passado, a proteína de insetos e de suas larvas complementavam o cardápio principalmente composto por vegetais adaptados à extrema aridez. As cidades eram túneis complexos escavados abaixo das ruínas das antigas metrópoles. Tudo hermeticamente fechado e com grandes corredores de cultivo cobertos por telhados com placas de inurartita soldadas em malhas metálicas. Ir à superfície era trabalho para uns poucos agentes, como Bris.

Ele desprendeu o cantil do cinturão e bebeu um modesto gole de água morna. Do bolso, retirou uma pequena esfera de vidro e sacudiu-a vigorosamente. Logo os lumens ali adormecidos despertaram projetando uma crescente onda de luz amarelada. Ele deixou cair a esfera do meio da ponte. Em poucos segundos, essa caiu até chegar ao fundo, iluminando o local. O vidente novamente acertara. O local estava repleto de lagartas de piche.

Bris suspirou — detesto essas lagartas!

As lagartas eram atraídas pela umidade dos reservatórios, e se não fossem eliminadas, cavariam a rocha podendo provocar vazamentos. Bris amarrou o elástico nos tornozelos e preparou-se para o salto. Ele tinha vontade de gritar, mas isso não era conveniente à noite, poderia atrair predadores. Saltou gritando mentalmente. Iurrurrul! Isso é muito bom!

O elástico se esticou e cedeu várias vezes antes de parar. Bris dobrou o corpo, prendeu sua escadinha, desenrolou-a e desceu os metros finais até o solo. Seus pés afundaram alguns centímetros no pó fino de sedimentos e fizeram subir uma nuvem, sua máscara com filtros ajudava a respirar sem tossir. A luz forte da bolinha ainda subia além do pó fino de um ponto adiante. Tirou a lata de veneno da mochila e engatou a bomba de aplicação enquanto caminhava na direção do grupamento de lagartas. As coisas andavam sempre umas sobre as outras, como uma espécie de cardume, para sobreviver ao ataque de predadores. O chão perto de onde estavam estava grudento.

— Eca! Isso fede! A gosma oleosa subiu pelos canos das botas. Daria muito trabalho para limpar.

— Fluc, fluc, fluc — soava o pistão toda vez que Bris bombeava a haste comprida. Da ponta do aplicador jorrava o veneno em gotículas que se depositavam sobre a massa de lagartas em movimento. O efeito não era imediato, mas estariam todas mortas depois de algumas horas. Algumas largartas eram bem graúdas, chegando a medir um metro e meio.

— Fluc-uc-uc-uc! — Bris bombeava mais rápido agora.

Uma brisa fria passou pelo lugar. Aquilo não era bom sinal. O homem pensou em sua filhinha, Naia. Em como ela chorava e se agarrava a ele toda vez que tinha que trabalhar fora dos túneis. Ela tinha medo que ele não voltasse. Acontecia, mais cedo ou mais tarde, com os ASPE. Não era uma escolha, uma parte da população era sorteada e alistada para os serviços públicos exteriores. Menos de vinte por cento sobreviviam aos cinco anos. Só faltavam três meses para ele. Três meses! Bris repetia mentalmente enquanto circulava o perímetro e bombeava o veneno nas lagartas.

Naia tinha sido um acidente. A maioria dos jovens em idade de serviço exterior praticavam o celibato justamente para não formar família, mas Bris não resistiu e se casou às pressas depois que a namorada ficou grávida. A pequena Naia tinha apenas quatro anos, mas já entendia bem que o serviço de seu pai era um negócio perigoso. Bris esvaziou a lata e voltou procurando o pingente de metal na ponta de sua escada. Viu o brilhinho refletido e caminhou rápido para lá. O grude das lagartas nas botas agora coberto por uma grossa camada de pó de sedimentos. Bris escutou o som de pedrinhas deslizando pelo barranco íngreme e soube que alguma coisa estava por perto. O que seria? Um gramerlão? Uma dáspize? Ele já tinha se livrado dessas criaturas algumas vezes. Mas sua mente clamava com fervor. Por favor, Silam Mudha! Três meses! Não uma aracnopélia! Não uma aracnopélia!

Finalmente chegou à ponta do elástico. Sua mão tremia. O suor quente escorria pelo rosto e pingou dentro dos olhos, fazendo-os arder um pouco. Tirou a barrinha de reagente e enroscou-a no elástico. A reação começou e lentamente, o elástico se contraiu fazendo-o subir. Vamos, vamos, vamos!

— Sliich! — Bris escutou algo sibilar bem ao seu lado.

— Silam Mudha! — deixou escapar desesperado. — Sliiich! Sliich! Sliich…

— Merda! — Bris gritou quando o esguicho de teia grudenta bateu em sua coxa. Ele sentiu o tecido repuxar atraindo-o para o lado. Tirou um estilete do bracelete de couro no pulso esquerdo e no desespero, cortou o tecido da calça e um pouco da sua própria carne. Mordendo os lábios continuou cortando mais atento para não se cortar novamente. Assim que se soltou saiu girando e balançou de um lado para o outro num movimento pendular.

— Sliiich! Sliich! Sliiich! Sliich!

A aracnopélia disparava sua teia tentando acertar seu alvo que se balançava de um lado ao outro. Bris tentava parar de girar, mas o elástico torcia girando-o. O movimento parava um pouco quando chegava ao limite. Bris pegou seu reagente reserva.

Isso pode acelerar um pouco a subida.

Mas na hora de tirar a película e colocá-lo no elástico o bastão escorregou e caiu lá em baixo.

— Merda! Merda de lagarta!

— Sliiich! Sliich!

O disparo finalmente acertou. Para a sorte de Bris, pegou no meio de sua mochila. Desta vez a criatura puxou-o rápido e com força. Ainda que gostasse muito da mochila e carregasse ali muitas coisas úteis, não hesitou em soltar a fivela. Um lado saiu e o deixou preso num ângulo ruim pressionando seu ombro e braço. O elástico estava estirado e desacelerou seu movimento rumo à criatura.

Bris chegou a ver os contornos horripilantes da fera bem de perto. Várias pernas abertas se apoiando numa fenda entre as rochas e ali no meio, vários pontinhos de luz refletidas revelando o local onde seus vários olhos estavam. A correia da mochila cedeu devagar enquanto a mão de Bris puxava-a com força. Uma nota grave soou quando o elástico finalmente se contraiu. Bris foi atirado para cima como uma pedra de estilingue. O movimento em arco o fez passar por trás e depois por cima da ponte e cair do outro lado, chegando a se chocar contra a parte inferior da construção. Confuso e zonzo, Bris voltou a balançar preso ao elástico pelo gancho na cintura. Sentia dor, mas felicidade e alívio momentâneo por não ter virado comida.

Bris gemeu e usou todas suas forças para escalar o elástico. Não ia esperar mais tempo até que ele completasse o processo de retração. Finalmente, alcançou a ponte e escalou o restante até cair no chão e relaxar por um instante, deixando a dor fluir pelo seu corpo. Bris era um sobrevivente.

Muitos anos depois, Bris vivia tranquilo em sua cova e gostava de narrar aquele episódio ao seu neto, Talas, filho de Naia.

— Três meses! Era o tempo que faltava para eu largar o serviço!

Sementes randômicas usadas para criar o texto:
Confuso, Grudar, Preto, Vazamento, Ponte, Quente, Ilimitado(a), Responsável, Ilegal e Rio.

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